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A (quase) conquista de Oruro

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guerrero silvio A (quase) conquista de Oruro

Impressiona imaginar de que maneira surgiu, no comecinho do Século XVII, a 3.735 metros de altitude, uma cidade moderníssima para aqueles tempos. Aliás, essencialmente impressiona imaginar por que razão alguém desejaria habitar uma região inóspita, de ar quase irrespirável.

Uma palavra explica: prata. Então, os espanhóis que invadiram a Bolívia constataram que, habitualmente, os urus, nativos que moravam lá em cima desciam a ribanceira para trocar peças do precioso metal por alimentos.

A ambição gritou mais alto do que o sacrifício. E, ao descobrir que a região era praticamente toda de prata, um certo Manuel de Castro y Padilla determinou a destruição das cabanas dos urus e o levantamento das bases de tal cidade, planejada como um tabuleiro de Xadrez, ao estilo de algumas das metrópoles mais interessantes da Europa do período.

Castro y Padilla implantou a sua pedra fundamental em 1 de Novembro de 1606. E, entre seus patrícios e escravos negros, utilizou na edificação da vila cerca de 15.000 pessoas. Deu-lhe o nome de San Felipe, em honra do seu monarca. Um nome que se manteve até 10 de Fevereiro de 1781, com a eclosão de um movimento libertário que se espalharia pelos Andes.

Claro, foi obrigatório o rebatismo da vila, que já abrigava 50.000 pessoas e que, desde então, se tornou Uru-Uru, ou Oruro, “o coração da terra”.

A prata acabou, o estanho assumiu a sua posição, o estanho também acabou – mas, ainda assim, graças às suas peculiaridades, às suas festas, às suas danças, ao turismo, Oruro cresceu. Atualmente, lá vivem 235.700 pessoas. Lá nasceu, amadorísticamente, em 19 de Março de 1942, o Club Deportivo San José, que se tornaria profissional apenas em meados de 1977.

O San José só obteve dois títulos nacionais da Bolívia, em 1995 e em 2007. Só obteve cinco vezes uma classificação à Libertadores. Quer dizer, no papel, jamais seria um adversário sequer decente para o Corinthians, atual dono da principal taça sulamericana, atual campeão do mundo. Porém...

Baratíssimo, o elenco do San José custa menos de R$ 1,2 milhão ao ano – no Timão, o garoto Alexandre Pato arregimenta metade dessa quantia ao mês. O clube de Oruro, no entanto, dispõe de um craque extraordinário, eventualmente decisivo – o ar rarefeito dos seus 3.735 metros de altitude.

Em tal cenário os desacostumados, ou mal preparados, sangram pelo nariz, sentem que a garganta e os pulmões se queimam, ficam tontos, enjoados.

Para minimizar os efeitos da altitude, a delegação do alvinegro aterrisou em Oruro meras quatro horas antes de a partida principiar. Mais: carregou, na bagagem, bujões suplementares de oxigênio. E, no gramado, procurou, pacientemente, desfrutar o errro do rival, como orientou o treinador Tite.

Uma primeira chance surgiu logo aos 6’, num lance surpreendente em velocidade, pela esquerda, um cruzamento de Fábio Santos e um petardo de Gallardo. O ritmo imposto pelo Corinthians impactou o San José. Depressa, contudo o clube da casa mostrou que também tinha o seu trunfo. No caso, o chutão em profundidade, por cima da plantada retaguarda do Timão.

Não havia dúvida em relação às diferenças técnicas que separavam as duas equipes. De todo modo, restava saber se os atletas do alvinegro manteriam o seu fôlego diante da correria desenfreada dos seus rivais da Bolívia. No ar rarefeito é crucial evitar que o desgaste prolifere descontroladamente.

Alívio para timão, recebeu algumas ameaças estabanadas e foi aos vestiários e aos bujões de oxigênio com 1 X 0 no placar.  Na volta à etapa derradeira, Tite não realizou qualquer mudança. Mas, precavido, o treinador mandou que todos os seus suplentes se aquecessem. Azar do Corinthians, aos 61’, García, fresquíssimo, recém-entrado em campo, cruzou da esquerda e, depois de uma confusa saída de Cássio, o veterano Carlos Saucedo igualou.

O Timão forjou uma chance preciosa aos 65’, quando Guerrero cruzou da esquerda e, a dois passos da meta vazia, Émerson aparou no poste. O mesmo Émerson ainda desperdiçou, aos 67’ – poderia invadir a área e colocar num canto mas optou por um chutão sem destino. Aos 71’, Tite decidiu tirar Émerson e se arriscar com os pulmões mais jovens de Pato.

Mais azar do alvinegro: aos 74’ o zagueiro Paulo André, exaurido, com dor de cabeça, pediu substituição. Tite precisou recorrer a outro garoto, Felipe. Daí, os últimos momentos do cotejo transcorreram de maneira torturante.

Consolos? Vários. Na sua (quase) conquista de Oruro, o Corinthians sobreviveu à altitude. Ampliou a sua invencibilidade internacional, entre Libertadores e Mundial, para dezessete jogos. Não perdeu nenhum dos seus atletas para lesões. E certamente vai atropelar o San José em São Paulo.

PS.: Absurdo, grotesco, tenebroso, terrível, o episódio que levou à morte do adolescente Kevin Douglas Beltrán Espada, catorze de idade, atingido por um rojão sinalizador, aparentemente atirado por torcedores do Corinthians. Ao menos, doze foram detidos, identificados - aliás, todos com objetos semelhantes ao que teria causado a morte de Kevin.  Atestada a sua culpa, ou a sua cumplicidade no crime, todos precisam ser punidos, exemplarmente, e pelas leis da Bolívia. Agora, sobram no ar rarefeito algumas questões: 1) Como os cretinos passaram com os rojões na alfândega do Brasil? 2) Como passaram com os rojões na alfândega da Bolívia? 3) Como entraram com os rojões no estádio etcetera e tal? Estupidez à décima potência.

Dê a sua opinião. Pode discordar, se quiser. Juro que não fico bravo.


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